Monday, February 20, 2006

A morte da Havana de um escritor defunto

Viveu quase 40 anos no exílio. Na sua casa de Londres, Guillermo Cabrera Infante empenhou todas as forças em manter viva uma cidade não coberta pelas ruínas da Revolução. Com a sua morte, derrotado no braço de ferro com o ditador que o expulsou, desaparece para sempre essa Havana livre, nocturna e faladora.

Texto de António Rodrigues

A Havana de Guillermo Cabrera Infante deixou de existir. Com a morte em Fevereiro do escritor cubano, fervoroso anticastrista exilado em Londres, desaparece a cidade que se cristalizara na sua mente, a cidade que transpusera para a sua prosa feita jogos de palavras, de construção e desconstrução de fonemas, de musical respiro, de bolero de sílabas: chachacha. A Havana resplandecente resistindo na memória à omnipresença da Havana decadente, a Havana das ruínas impostas pelo ditador em nome de uma Revolução feita, também ela, apenas de palavras. As ruínas mataram o resplendor: Cabrera Infante é outro mais que já não poderá dizer “Até amanhã em Havana”. O terco ditador sobreviveu a outro inimigo.
Ao longe, quase imperceptível, ainda se poderá ouvir, o rumor das ondas no Malecón, a cidade a espraiar-se de prosa nocturna, partindo de um bolero para a música clássica, do regaço de uma redacção para os lençóis amarrotados de um bordel, desses solares habaneros, feitos colmeias de migrantes, para a casa de Lezama Lima ou de Virgílio Piñeyro, sempre atravessando o bairro vermelho de Havana. O que se acabou foi o suave chapinhar dos corpos ou o mergulho furioso da paixão nas águas do amor e do sexo que Cabrera Infante soube moldar em colchões de palavras, numa cidade de eterno Verão e imortal voluptuosidade.
Uma cidade a escorregar pelos dedos, a escorregar pelo corpo, a escorregar pelas goelas como o rum emborcado sempre (“a minha vida era um caos nocturno com um único centro que era o Las Vegas e no centro do centro um copo com rum e água ou rum e gelo ou rum e soda”), a escorregar nos passos de desejo das mulatas pelo Malecón. Arsénio Cué e Silvestre nunca mais voltam, capota aberta, a acelerar pelas ruas de Havana.
“Vínhamos Silvestre e eu a descer no meu carro pela rua O vindos do Hotel Nacional e atravessámos a 23 e passámos como um peido em frente do Maraka e Silvestre disse-me As luzes e eu disse-lhe O quê? e ele disse-me As luzes, Arsen, olha que apanhas uma multa porque já passava das sete e no curto espaço de descer a lombazinha da O e atravessar a 23 tinha escurecido e num descapotável (…) para aqueles que nunca passearam num descapotável pelo Malecón, entre as cinco e as sete da noite, no dia 11 de Agosto de 1958 a cem ou cento e vinte: essa regalia, essa boa vida, essa euforia do dia que está na sua melhor hora com o sol de Verão a tornar-se vermelho sobre um mar de anil, entre nuvens que às vezes deitam tudo a perder ao convertê-lo num crepúsculo de fim de filme religioso em technicolor, coisa que nesse dia não aconteceu, embora às vezes a cidade seja creme, âmbar, cor-de-rosa em cima enquanto em baixo o azul do mar é mais escuro, se torna púrpura, roxo, e sobe até ao Malecón e começa a penetrar nas ruas e nas casas e restam apenas os concretos arranha-céus rosados, cremosos, de merengue tostado quase pela minha mãe e era isso que eu estava a ver, e sentindo o ar da tarde na cara e a velocidade entre o peito e as costas, quando este Silvestre se sai com aquela de As luzes! E acendi as luzes.” (“Três Tristes Tigres”)
Pereceu a memória dessa Havana dos cinemas de estreias, dos prazeres tacteados no escuro iluminado, de ver aparecer esse jovem baixo e decidido, tez escura de negros ancestrais, habanero de adopção, ele que nascera em Gibara, no Oriente da Ilha, mas cedo chegara à capital. Eterno voyeur, para lá e para cá de si mesmo. “Duas pátrias tenho eu: Havana e a noite”, escreveu em “Havana para um Infante Defunto”.
Essa Havana cristalizada nos anos eternos do final da década de 50 – não por qualquer saudade de Batista, apenas porque o barbudo-mor Castro lhe arrancou à força a sua cidade para a deixar, sem despudor e até deleitadamente, arruinar.
“Em Cuba, a lua brilhava como antes da Revolução, o sol era o mesmo, a Natureza exibia por todo o lado a sua deslumbrante beleza. A geografia era a mesma, estava viva, mas a História tinha morrido. (…) Nada estava no devido lugar. As feições eram reconhecíveis, mas até a própria cidade, os edifícios, revelavam uma lepra nova. As ruas estavam cobertas por uma viscosidade física que gotejava dos motores dos raros veículos devido a um defeito irreparável na refinação do petróleo russo que, com a sua escura pastosidade na qual as mulheres deixavam os sapatos (artefactos pré-históricos que alguns espertalhões alugavam a cinquenta centavos à hora!) e todas as pegadas, parecia a metáfora de uma viscosidade moral.
“Numa incrível reviravolta hegeliana, Cuba tinha dado um grande salto em frente – mas tinha caído para trás.” (“Mea Cuba”)
Nos últimos anos, talvez porque o exílio se foi eternizando, o ódio ao ditador cubano que “matou” a História cubana – “a História cubana morreu porque Fidel Castro a matou com a sua eterna pistola no uniforme militar de imutável verde-azeitona – visceralizou-se a tal ponto que, por mais argumentos racionais que usasse, já quase todos o ouviam como resultado do domínio da sem-razão.
“É óbvio que Cuba é a mea máxima culpa. (…) Claro que a palavra-chave é a culpa. Não é um sentimento estranho ao exilado. A culpa é muita e é dupla: por ter deixado a minha terra para ser um desterrado e, simultaneamente, ter deixado para trás os que seguiram no mesmo barco, que ajudei a atirar ao mar sem saber que era ao mal.”
A citação de “Mea Cuba”, onde colige os seus escritos políticos dispersos, mostra a culpa sentida por ter embarcado na aventura da Revolução; mesmo de forma breve, mesmo crítica, a culpada participação pesa nas palavras deste feroz amador da liberdade individual, tão feroz que por ela se viu ostracizado à esquerda e à direita quando cortou com a Cuba da aura romântica anti-imperialista, da concretização utópica do sonho marxista tropical – bem mais agradável para o pensador da esquerda europeia que o soviético regime com a enorme Sibéria no armário.
Em plenos anos 60, Cabrera Infante tornou-se um pária para as ditaduras (Franco negou-lhe o pedido de cidadania obrigando-o a refugiar-se em Londres, onde haveria, anos mais tarde, de adquirir a cidadania inglesa) e para os salões intelectuais das democracias. Ainda hoje, em certas latitudes, a menção do seu nome dá direito a discussões à moda antiga.
“A minha biografia foi escrita, de uma forma ou de outra, por Fidel Castro e pelos seus escribas de dentro e de fora da ilha”. (“Mea Cuba”)
Quando abandonou definitivamente a Ilha – a 3 de Outubro de 1965 –, entrando nesse avião com destino a Madrid, levou com ele os alicerces da cidade que passou a existir em permanência na sua cabeça e nos seus livros. A Havana de Cabrera Infante vivia numa realidade paralela, respirava o ar não poluído pelo petróleo marxista-leninista.
Numa entrevista, explicou: “Sonho com uma Havana distinta da realidade e da recordação: uma Havana composta dos melhores momentos de 1958 e 1959, que foi, apesar das suas contradições, como um apogeu da liberdade – o demais foi puro perigeu –, e isso fica fora dos meus sonhos, e agora já não (as curas do tempo) reservado aos meus pesadelos.”
É essa a cidade livre até ao extremo do anarquismo, que vivia de noite e resistia à aplicação das regras diurnas, povoada de estranhos seres românticos: gigantescas montanhas de carnes com vozes únicas e inimitáveis; mulheres inteligentes não atreitas a constrangimentos morais transformando o amor, o sexo, o prazer em peças de arte popular, em artesanato de corpos entrelaçados; homens com tumores cerebrais capazes de transformar a língua, o idioma, a comunicação numa aventura eterna, numa paródia fonética, num exercício lúdico mais do que numa necessidade de entendimento.
“De facto, a maior parte das personagens que passam a vida deambulando de um nightclub para outro estão a resistir à ordem social que detestam. Os seus serpenteares nocturnos representam a incansável busca de liberdade e ao mesmo tempo de prazer”, diz Raymond D. Souza no seu livro sobre o escritor cubano: “Guillermo Cabrera Infante – Two Islands, Many Worlds”.
O que acontece em “Três Tristes Tigres”, obra-prima e referência da literatura mundial da segunda metade do século XX, não é só uma tentativa de aproximação a uma cidade carregada de vida, a transbordar de liberdade (à noite todas as ditaduras são pardas), como, igualmente, uma reinvenção literária dessa capacidade em transformar a existência em coisa única. Ser de Havana é não ser de nenhuma outra cidade – habanero sempre, para sempre.
Ser de Havana – dessa Havana a que Cabrera Infante deu a vida que Fidel Castro tirou – era o último refúgio do exilado. Vingança contra a ditadura que o expulsou, ao criar uma realidade paralela onde quem não existia era o ditador, arma psicológica contra as câimbras nostálgicas e os torpores melancólicos da distância, e exercício de arqueologia urbana: desenterrar a cidade debaixo das ruínas provocadas pela Revolução.
“Havana era uma redução poética de Cuba, uma metáfora. Nero mandou incendiar Roma para a reconstruir. Castro, quase César, transformou Havana numa ruína que agora restaura. O projecto de Nero era grandioso, os propósitos de Castro, miseráveis.
“A Havana de ‘Havana para um Infante Defunto’ não é a minha Havana. Em vez de uma cidade prodigiosa é uma imagem através do espelho, restaurada ruína, cidade do pesadelo. A Havana Velha, em fotografias a cores, é uma puta pintada. Não pode haver fim mais triste do que o laconismo de uma cidade que era loquaz, faladora, a pátria dos hablaneros.”
As cidades são entes vivos em permanente luta contra o poder do tempo e a acção humana, digladiando-se para evitar as ruínas que todas possuem no seu interior como ameaça. Só os territórios míticos e/ou as cidades ficcionadas, ou os territórios ficcionados e/ou as cidades míticas, como a Macondo de García Márquez ou a Yoknapatawpha de William Faulkner, conseguem enfrentar cronos de forma mais eficaz.
A Havana de Cabrera Infante pertencia às últimas. Ao mesmo tempo concreta e inventada, tinha semelhanças com a urbe real do mesmo nome, mas era basicamente diferente. Nascida das recordações, sofria das virtudes e dos males de todas as construções a partir da memória: parciais, transmissíveis, irreais. Qualquer semelhança com a realidade não era coincidência, embora, muitas vezes, ganhasse vida maior que o modelo que lhe serviu de inspiração.
Explica Raymond D. Souza: “A sua partida de Havana em 1962 marca o fim de uma relação amorosa de 21 anos com a cidade. Muito do que se passou nesses anos reverberaria durante o resto da sua vida. Não só acontecera a sua transformação linguística num residente de Havana, descartando o seu acento e maneirismos orientais, também adquirira os conhecimentos de inglês e de outras línguas. As amizades com Antonio Ortega, Carlos Franqui e Alberto Mora; o fim de um casamento e o princípio de outro; as alegrias e responsabilidades de duas filhas; e o seu embrenhar na vida artística e intelectual da cidade. Além disso, tinha acumulado um conhecimento íntimo de Havana e aprendido a maioria dos seus segredos, adquirindo no processo um sentimento intuitivo para com uma época e um lugar que haveriam de moldar a sua imaginação criativa durante toda a sua carreira.”
Naquilo que se viria a denominar como estilo pós-moderno, mas em Cabrera Infante mais do que estilo era expressão efectiva (afectiva) de um habanero, a sua obra mostra essa capacidade de misturar a alta e a baixa cultura, a erudição com o popular, as composições de música clássica e os boleros, Bola de Nieve e Tchaikovsky, os clubes nocturnos, o jornalismo, a cinemateca e os cultos religiosos sincréticos.
Suzanne Jill Levine, citada por Souza, definiu as fronteiras literárias do autor de “Três Tristes Tigres” desta forma: “Um anglófilo como Borges, Cabrera Infante tomou como modelos Lewis Carroll e Joyce para virar as palavras do avesso, na descoberta de neologismos, e Hemingway, Mark Twain, Raymond Chandler e S. J. Perelman serviram-lhe como referência na tradução do discurso falado para a linguagem escrita.”
Havana, “a cidade de palavras”, referiu o escritor numa entrevista, “e ao falar de cidade posso falar-lhe não só da topografia, a referência ao terreno, mas também da topologia no sentido em que esta ciência moderna que, entre outras coisas, se dedica ao estudo das curvas, é uma ciência que a mim me interessa muito, mesmo sendo pouco científico, interessa-me porque se debruça sobre fenómenos que noutros tempos e mesmo hoje, a outros cientistas, pareciam meros jogos”.
“Três Tristes Tigres” é o “Dubliners” de Cabrera Infante, mesmo que as suas experiências com a linguagem o coloquem mais perto de “Finnegans Wake”, embora o cubano seja menos hermético e mais divertido, mais musical que James Joyce.
Escreveu Cristóbal Alliende Piwonka, no obituário do autor cubano publicado no “El Mercúrio” do Chile: “A fala – não só a cubana – e as suas inflexões foram vistas por este escritor como uma geografia nova que, longe de transmitir determinada realidade de maneira fiel, costuma velar e confundir, até ao ponto de ser toda significante e não significado. E se o significado consegue manifestar-se, fá-lo da maneira mais íntima, múltipla ou pelo menos oblíqua, sempre de modo inesperado e inevitável, produto de cada leitura individual”.
Admirador do irlandês, Cabrera Infante também traduziu o “Dubliners” para espanhol (aliás, para cubano). “Traduzi o livro para o meu idioma, não só por comodidade, também porque o próprio Joyce trabalhou o seu livro com um idioma aprendido mais do que vivido e no original abundam, como seria de esperar, os irlandesismos. O livro foi-me proposto por uma editora e eu aproveitei para ler bem esse livro de Joyce que é o antecedente directo (e não ‘O Retrato do Artista Enquanto Jovem’) do ‘Ulisses’. Também me propuseram traduzir o ‘Ulisses’ mas declinei a oferta. Havia outra oferta ainda mais estapafúrdia que era a de traduzir, nem mais nem menos, o ‘Finnegans Wake’”.
Ainda citando Alliende Piwonka: “A tentativa de Cabrera de traçar uma geografia da língua derivou numa mania do como se diz o que se disse e na configuração de um tipo de arte barroca baseado nos jogos de imagens (barroco popular, entenda-se, porque Lezama Lima encabeçou em Cuba o barroco erudito)”.
Cartografia emotiva e mapa real, a Havana de Cabrera Infante desenhava-se tridimensionalmente, acrescentando a essência ao espaço e tempo, ou seja, acrescentando aquilo que transforma as cidades em mais do que betão armado e alcatrão – a vida.
“– É curioso – disse Cué – como o mundo muda de eixo.
– Porquê?
– Há uns tempos este era o centro da Havana diurna e nocturna. O anfiteatro, esta parte do Malecón, os parques de La Fuerza ao Prado, a avenida das missões.
– Era como se Havana se aproximasse outra vez dos tempos de Cecília Valdés.
– Não, não é isso. É que este era o centro, sem mais explicações. Depois foi o Prado, como antes deve ter sido a Praça da Catedral ou a Praça Velha ou a Câmara. Com os anos subiu até à Galiano e San Rafael e Neptuno e agora já está na Rampa. Pergunto a mim mesmo onde irá parar este centro ambulante que, coisa curiosa, se desloca como a cidade e como o sol, de leste para oeste.” (“Três Tristes Tigres”)
Impedido de voltar a percorrer a topografia de Havana por um patriarca que se recusa a cumprir o seu Outono, o escritor cubano transformou o escritório da sua casa de Londres, na ruidosa Gloucester Road de South Kensington, na sua privada capital cubana. Afincadamente, não só por ele, mas por sentir a real Havana arruinando-se de forma irremediável, manteve-a nutrida e aconchegada pela sua imaginação.
“A partir de ‘Três Tristes Tigres’, a oralidade tomou conta da página em branco e as conversas de rua inundaram o que até antes se mostrava rígido e regular. O livro, então, converteu-se num malecón cheio de confissões fragmentadas habaneras”, refere Cristóbal Alliende Piwonka.
Nessa Havana sonhada viviam seres com a boca cheia de fumo e palavras, prontos a parodiar a realidade, porque a vida só vale a pena quando vivida com sentido de humor, construída e desconstruída, cantada ao ritmo de um bolero. No prólogo de “Delito por Bailar el Chachacha”, Cabrera Infante fala de música: “Devo mencionar aqui a Frank Domínguez, compositor de boleros, talvez o músico popular cubano mais sofisticado dos anos cinquenta. Mas no bolero mais profundo a saudade é só uma duvidosa companhia. Assim o sentimento maior que produzem os boleros não é amor, mas o amor à recordação do amor, a nostalgia”. O mesmo vale para Havana, para o amor a essa recordação do amor a Havana de antes da Revolução.
Ainda Alliende Piwonka: “A linguagem nunca foi para ele um fim em si mesmo. Muito pelo contrário, o trabalho do escritor cubano teve origem na sua memória, no seu exílio e nos vestígios da sua Cuba querida. A sua Cuba sensual. A sua Cuba de cabaret. A sua Cuba que deixa de ser tragédia para converter-se numa faladora incessante e burlona. Na sua juventude carregada de imagens cinematográficas”.
Quando a família se instalou em Havana, vindos de Gibara, Guillermo tinha 12 anos e uma paixão pelo cinema, alimentada pela mãe que sempre teve fascínio pela sala escura. Na capital cubana, cedo construiu um itinerário cinematográfico, principalmente nos salas de bilhetes mais baratos, pois a exaurida economia familiar de um casal de comunistas que levava a sério o seu compromisso com o partido nunca permitiu ir além da pobreza.
“Fomos, fui, ao cinema San Francisco, que foi o primeiro cinema em que estive em Havana, ao qual nunca voltaria. No entanto, recordá-lo-ei sempre com a sua arquitectura de pequeno palácio do prazer, cinema de bairro, cinema amável e ruidoso, cinema sem pretensões dedicado a oferecer a sua missa movie magnífica, porém apanhado entre duas épocas, sem ser o templo art déco que foram os cinemas construídos no final dos anos trinta que descobriria no centro de Havana, e sem a pretensiosa simplicidade dos cinemas de finais dos anos cinquenta, os últimos cinemas comerciais que se construíram em Cuba. O San Francisco foi um lugar ideal para a iniciação. Podia ter sido melhor o cinema Los Ángeles, que não estava muito longe, ou ainda melhor o Hollywood, onde nunca fui. Mas o San Francisco, recordando através do seu nome um dos meus filmes preferidos na terra, foi um presente de Eloy Santos, quem, apesar da sua pobreza e esmagado pela súbita visita que lhe caiu do céu astronómico, e não teológico, teve a delicadeza de nos convidar, de me convidar, de me iniciar no cinema em Havana nesse domingo fausto de Agosto de 1941.”
Nos últimos anos, andava a escrever outro livro, uma continuação de “Havana para um Infante Defunto”, que sentia como desafio por estar circunscrito a apenas um bairro de Havana, El Vedado. Nas suas palavras: “Constrangi-me a situá-lo somente num bairro e acho que essa é uma das dificuldades que tem. Realmente, transformar o bairro El Vedado no sítio onde transcorre as aventuras da personagem que narra o livro é uma espécie de labirinto. A acção acontece apenas no Verão de 1957”.
Sofrerá “La Ninfa Inconstante” do facto de o escritor não ter tido tempo de reduzi-la das mais de mil páginas para as 400 que pretendia para a sua versão final? Cabrera Infante estava a trabalhar nele desde 1995, mas não estava contente com o seu resultado final, se calhar por não ter encontrado a forma de sair do labirinto auto-imposto.
À mulher, a actriz cubana Miriam Gómez, incumbiu-lhe a tarefa de seguir as suas instruções para que o livro venha a ser editado com a dimensão pretendida. Mas há outros. A actriz garantiu recentemente que Cabrera Infante “deixou mais sem publicar que publicado” e que outros dois romances permanecem inéditos: “Cuerpos Divinos” e “Un Mapa Hecho por un Espía”
Também estes dois livros são sobre Cuba; sobre Havana. Como diz Miriam Gómez, citando José Martí, Guillermo Cabrera Infante “morreu sem pátria, mas sem amo” num hospital em Londres, porém, onde estava realmente era em Havana: “Ele vivia em Cuba aqui nesta nossa casa; mas a Cuba dele, essa, não existia”.

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