Wednesday, July 05, 2006

O caso Handke

"O escritor austríaco Peter Handke foi nas últimas semanas alvo de duas decisões censórias da parte de instituições culturais europeias, não por qualquer texto que tivesse escrito, mas por ter publicamente defendido posições pró-sérvias.
No primeiro caso, a Comédie Française retirou da sua programação uma peça de teatro de Handke que deveria subir à cena em 2007.
No segundo caso, os protagonistas foram três partidos alemães – os Verdes, os Social-democratas e os Liberais -, que bloquearam a dotação (50.000 euros) do prémio Heinrich Heine com que a câmara municipal de Dusseldórfia o distinguira.
Houve, prontamente, na Áustria, França e Alemanha, reacções de apoio e reacções de condenação. Em Portugal, que pensam, do que aconteceu, dramaturgos e directores de companhias de teatro? Os cinco entrevistados pela Lusa condenaram as atitudes das entidades protagonistas dos dois casos e lembraram casos anteriores de características semelhantes, ocorridos à esquerda e à direita do espectro político e ideológico.
Mário de Carvalho, romancista e contista que também experimentou, e com êxito, o texto teatral, vê “na retaliação contra Peter Handke” um “sinal preocupante de degradação das mentalidades na Europa” e entende que o director da Comédie Française “devia ter sido imediatamente demitido”.
Quanto à “manipulação sobre o prémio Heine” ela “mostra, na opinião do escritor, “que as sombras do fascismo permanecem”.
“Há – argumenta – princípios de civilização e respeito dos quais não se pode transigir. A obra nunca pode pagar pelo autor. O princípio do ‘fair-play’ não é apenas um capricho dos meninos-família dos colégios ingleses. É expressão de um princípio civilizacional que marca o primado da justiça e do respeito pelo outro”.
A Mário de Carvalho não interessa que Handke “tivesse em tal momento tal ou tal opinião sobre a Sérvia e Milosevic”, porquanto o importante “é que se trata de um grande escritor, cuja obra não pode servir de refém às opiniões”.
Um outro autor teatral, António Torrado, sobretudo conhecido na área da literatura infanto-juvenil, começou por confessar nunca ter compreendido muito bem “a sanha de alguma Europa bem pensante contra a Sérvia, como se numa guerra de contornos tribais houve necessidade de diabolizar uns para santificar outros”.
“Peter Handke – disse – cometeu o atrevimento de pôr água na fervura, ao escrever um livro em que acusa de demagogia maniqueísta os senhores repórteres da guerra. Sei que não se pode ser imparcial num conflito destes, mas, por favor, haja bom senso e não encostem, agora, um escritor à parede dos fuzilamentos, só porque emitiu uma opinião, discutível como todas, provavelmente formulada sob a influência nostálgica de uma Jugoslávia intacta, visitada na juventude”.
No caso concreto da remoção da peça de Handke da programação da Comédie Française, o autor das peças “Lisboa Furtiva” e “Franczarinas” considera que, “depois de tudo o que se passou pelo mundo e das inumeráveis vítimas por delito de opinião de uma banda à outra, era mister – nomeadamente da França, que inventou o cepticismo – outra conduta”.
Para Carlos Fragateiro, director do Teatro Nacional Dona Maria II, “os subsídios e as programações não devem depender das opiniões políticas individuais”, pelo que actos como os sofridos por Handke são “preocupantes” e trazem à superfície “indícios de autoritarismo, intolerância e falta de diálogo que nunca deveriam existir em estados que se afirmam como berços da democracia”.
A dramaturga, actriz e encenadora Isabel Medina entende que tudo quanto seja “coarctar a liberdade” de expressão, na condição de esta “não prejudicar terceiros”, é “errado”.
No caso de Handke, o que, na sua avaliação, está em causa é uma “questão ideológica, de falta de liberdade, de falta de tolerância”.
“Podemos – diz – discordar das ideias das pessoas, mas isso não é motivo para as coarctarmos. Mal de nós quando se faz isto com um autor como Handke, com uma obra tão importante como a dele”.
João Mota, actor e encenador da Comuna, vê no caso de Handke mais um sinal dos tempos actuais em que tudo erroneamente se mistura e “o poder político é muito confuso”.
“Vivemos em democracia, todos podem, todos têm o direito de escrever, de se exprimir. A liberdade tem de ser assumida de maneira correcta, para ser exercida. O problema é que vivemos numa época de fanatismos, religiosos e não só”, disse.
A hipótese de um caso semelhante ocorrer em Portugal motivou uma última pergunta aos entrevistados, com uma ligeira variante.
Concretamente, a Carlos Fragateiro, a João Mota e a Isabel Medina a Lusa perguntou se em algum caso poderiam retirar da programação uma peça pelo facto de o seu autor ter publicamente defendido posições por eles rejeitadas.
Mário de Carvalho foi peremptório: “Com certeza que (casos semelhantes) podem ocorrer em Portugal. Estes e piores”.
Desenvolvendo a ideia, o autor de peças como “Água em pena de Pano” e “A “rapariga de Varsóvia”, esclarece: “Desde que o país, por volta dos anos 80, foi abocanhado por um punhado de Chico-espertos, capazes de vender o pai e a mãe, tudo volta a ser possível em Portugal. A partir de Portugal, nem sequer haveria massa crítica suficiente para que o problema tivesse a menor projecção mediática”.
“Neste momento, em Portugal - diagnostica - , estamos à mercê duma confederação de pequenos fascismos de quem há a esperar apenas a confirmação dum atraso secular”.
António Torrado confia em que, em França como em Portugal, “a razão acabará por prevalecer sobre a estupidez”.
“Se assim não for e se a fogueira de assar bruxas continuar acesa, até eu – promete, em chave de ironia – me atiro para o barulho e mando rezar missa, nos Jerónimos, por alma de Milosevich que Deus haja. A ver no que dá…”.
O director do Teatro Nacional Dona Maria II faz questão de frisar que, quando aceita uma peça de teatro, “é porque ela responde a uma estratégia de programação e a princípios de respeito pela liberdade e pela democracia”.
“A questão de escolha – prossegue – não tem a ver com as minhas ideias, mas com a ideia de potenciar ao máximo a capacidade que o teatro tem de nos dar uma visão holográfica do mundo. Para mim, e foi essa a minha escolha, o essencial era a obra e não o homem que a escreveu, apesar de as duas coisas não se dissociarem”.
“Mas, na verdade – reitera – nunca poderia retirar uma peça da programação por aquilo que eu poderia chamar ‘um delito de opinião’.
Esse pode ser um sinal de tendências autoritárias que já coarctaram a vida de um país como o nosso durante muito tempo”.
João Mota e Isabel Medina admitem, neste ponto em particular, que se questionariam sobre a apresentação em palco da peça de um autor que, publicamente, defendesse posições “muito graves”, atentatórias dos valores e dos princípios fundamentais da sociedade democrática.
“Imagine-se – exemplifica a actriz e encenadora - aparecer alguém do tipo do Hitler e que o autor (da peça programada) se punha do lado dele (apoiando as suas ideias e prática). Obviamente, eu não aceitaria”.
João Mota reivindica para si a liberdade de “dizer sim ou não” depois de analisada a tomada pública de posição do autor.
“Sou – pontua o encenador e actor - livre de dizer ‘sim’ ou ‘não’. Admitamos que esse autor revela, de repente, aspectos da sua personalidade, do seu pensamento, que me eram desconhecidos. Depende do que seja, depende do que esteja em causa. Tem de ser uma coisa muito grave (para retirar a peça da programação). Mas esta é uma questão pessoal, não implica mais nada. Porque não colaboro, é claro, com neonazis. Por exemplo”.
Nascido em 1942 em Griffen, Áustria, Peter Handke é um dos mais conceituados romancistas e dramaturgos europeus da actualidade.
A maioria da sua obra, sobretudo a de ficção, foi já vertida para português.
Da sua bibliografia destacam-se, no teatro, “Gaspar” e, na ficção, “A angústia do guarda-redes antes do penalty”, “A mulher canhota”, “Para uma abordagem da fadiga”, “Uma breve carta para um longo adeus”, “A tarde de um escritor” e, o mais recentemente traduzido em português, “Numa noite escura saí da minha casa silenciosa”.
Colaborou também no cinema. É autor, por exemplo, do guião do filme “As asas do desejo”, do realizador alemão Wim Wenders."

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